não é
necessário negar a singularidade das ciências para torná-la
passível de discussão
Isabelle Stengers
A leitura do livro de
Isabelle Stengers, A invenção das ciências modernas,
no contexto da disciplina Comunicação, simetria e abordagens
pós-identitárias, ministrada pelos Profs. Renzo Taddei e
Felipe Sussekind no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura da UFRJ, veio precedida do estudo de Jamais fomos
modernos, de Bruno Latour.
Isto acabou, de algum modo, orientando minha leitura do texto que, de
outra forma, teria permanecido um enigma, em função do elevado
volume de referências dos campos da filosofia e história das
ciências, ainda pouco familires para mim. Esta resenha, portanto,
não se pretende um inventário das questões abordadas por Stengers,
mas procura, modestamente, seguir algumas pistas deixadas pelos
movimentos do pensamento da autora que, a despeito de suas
singularidades, parecem ecoar a emergência de uma nova
epistemologia.
Duas questões irão
mobilizar nossa leitura: Em primeiro lugar, a identificação do solo
comum sob relativistas e críticos radicais; em segundo lugar, a
identificação de dois projetos políticos distintos a partir da
diferença entre ironia e humor.
O livro de Stengers
adota como ponto de partida a emergência de um campo de conhecimento
que ficou conhecido por uma série de nomes, como Estudos sociais
da ciência, Antropologia
das ciências, Science
Studies, entre outros. Na base
destes novos saberes estaria um projeto de ultrapassagem de qualquer
possível separação entre ciência e sociedade. De um lado,
portanto, temos os sociólogos “relativistas”, que não têm por
projeto a “denúncia” da ciência, mas o simples “exercício de
seu ofício”. Tal ofício ancora-se no pressuposto de que há uma
diferença fundamental e instransponível entre o que determinada
prática social propõe de si e a leitura empreendida pelo sociólogo.
Neste caso, Stengers evoca o que chama de “argumento da retorsão”.
A afirmação de que toda e qualquer ciência consiste em um projeto
social, segundo tal argumento, significa ler um conjunto heterogêneo
de práticas desde o interior de um projeto, também científico, que
é o projeto da sociologia. A questão que tal argumento desencadeia
consiste em saber como, enquanto ciência, a sociologia escaparia das
objeções que lança sobre todas as demais ciências.
O
discurso relativista pronunciado por certa corrente sociológica não
é, entretanto, o único esforço empreendido pelo campo emergente
dos Estudos sociais da ciência.
Há ainda, segundo a autora, um segundo movimento, que ela chama de
“crítica radical da ciência”, e que exemplifica a partir da
crítica da tecnociência e da crítica feminista da ciência. A
primeira crítica consiste em identificar a racionalidade científica
enquanto um dispositivo meramente instrumental, que traduziria todos
os seus avanços em desenvolvimentos técnicos. A crítica feminista,
em gesto similar, identifica a racionalidade científica à
preponderância dos valores masculinos na sociedade. A crítica
feminista radical, diferentemente de perspectivas feministas mais
antigas, que viam em ciências localizadas (medicina, história e
biologia, por exemplo) o presença de valores masculinos como a
competitividade, por exemplo, reivindica o a totalidade das ciências
enquanto “produto social sexuado”.
A
objeção lançada por Stengers ao movimento de crítica radical das
ciências consiste em que, apesar de consistir em um movimento de
resistência, estas orientações conferem ao cientista um lugar
privilegiado na definição daquilo que pode sua ciência, de quais
seriam os limites que não interessa, social e politicamente,
transpor. Ora, adverte Stengers, “os cientistas, os técnicos e os
experts não estão em
questão, estão à espera, como todos os demais, dos limites do
poder de expansão de uma dinâmica que os define para além de suas
intenções e de seus mitos” (Stengers: 2002, p. 21). Outro ponto
frágil na sociologia das ciências, este com respeito à crítica
radical mas não aos relativistas, é o fato de que, ao adotarem um
vetor de crítica a priori,
seja a técnica (no caso da tecnociência) ou os valores masculinos
(no caso da crítica feminista), a crítica radical esquiva-se das
controvérsias e das práticas propriamente científicas, bem como da
heterogeneidade do campo científico, marcada, frequentemente, por
uma divisão entre vencedores e vencidos.
Ora,
o gesto de Stengers de crítica das críticas à ciência parece
articular-se de um modo que nos remete às filosofias de Henri
Bergson e Gilbert Simondon, além de ecoar uma série de proposições
presentes na obra de Bruno Latour. Em Matéria e Memória,
Henri Bergson trata de revelar o solo compartilhado por duas
perspectivas epistemológicas rivais: o realismo naturalista e o
idealismo subjetivista. Diante da querela sobre a compreensão da
natureza da percepção, organizada em torno de um par que propõe o
mundo exterior ou a interioridade psicológica, respectivamente, como
fontes de conhecimento, Bergson ergue uma terceira via, que
ultrapassa as duas primeiras, revelando o que ambas compartilham (uma
incapacidade de pensamento dos processos perceptivos em um tempo não
espacializado), introduzindo um dinamismo em suas análises e
ultrapassando a equação percepção-conhecimento, que marcou a
filosofia moderna. Gilbert Simondon, leitor de Bergson, mimetiza o
gesto do filósofo ao revirar o substancialismo e o hilemorfismo
enquanto perspectivas que dariam conta dos processos de individuação.
Tanto a perspectiva substancialista quanto a hilemórfica, nos mostra
Simondon, partem do ser individuado, esquivando-se do que precisa
efetivamente ser explicado: os processos de individuação, a
ontogênese. Bruno Latour, à diferença dos dois mas obtendo efeitos
similares, problematiza o adjetivo “social”, enfatizando que este
nada explica, mas precisaria ser ele próprio explicado, a partir de
um conjunto heterogêneo de atores que constituem redes. Stengers
parece herdar esses movimentos do pensar quando, no que apresentamos
até aqui, ela revira perspectivas concorrentes a respeito da
ciência, mostrando que nenhuma delas, nem relativistas, nem críticos
radicais, abordam a ciência propriamente dita, enquanto um conjunto
de práticas concretas que, a despeito de efeitos de poder e modismo,
operam no interior de uma racionalidade de tipo muito próprio,
conforme sua retomada dos escritos de Galileu nos mostram no
desenrolar do livro.
O
segundo movimento do pensamento de Stengers que nos interessa evocar
encontra-se na passagem intitulada “A invenção política das
ciências” e está ancorado em uma distinção entre ironia e
humor, que a autora vai buscar na obra de Steve Woolgar. O
desenvolvimento deste tópico por Stengers busca dar conta da
dimensão política que se encontra na gênese da distinção entre
ciência e opinião e dos critérios que autorizam a intervenção,
exclusivamente por parte dos cientistas, nos debates científicos
(proposição de critérios, prioridades e questões). Neste ponto,
Stengers parece chegar ao cerne da singularidade das ciências. Isto
torna-se visível quando a autora explicita que a distinção entre
os cientistas e toda sociologia das ciências não pode ser rebatida
sobre o solo da política e propõe que se faça antes uma abordagem
política da construção da diferença entre ciência e não-ciência,
nos mesmos moldes a partir dos quais o “politólogo” pôde
“acompanhar as consequências, na vida política, da invenção
grega da política como problema” (Stengers, 2002, p. 83). O
paralelo entre política e ciência, no entanto, não implica aqui a
redução de um ao outro.
Paradigmática
do gesto sintetizado acima é a obra de Bruno Latour Jamais
fomos modernos. Latour teria
conseguido, segundo a autora, não opor às “verdades construídas
pelas ciências uma outra verdade de maior poder – mesmo que na
forma da negação a priori
de toda verdade que não se reduza a uma crença como as outras”
(Stengers, 2002, p. 84). O humor, à diferença da ironia, é
convocado aqui para sublinhar a forma de fazer história a que
Stengers está se filiando. A leitura relativista das ciências,
segundo Woolgar, é “irônica” na medida em que supõe “uma
referência (estável ou dinâmica) a uma transcendência”. Isto
significa que o sociólogo ou historiador irônico será aquele que
se propõe a desvelar as intenções das ciências, colocando-se em
uma relação de distância e exterioridade que lhe assegura uma
capacidade judicativa mais lúcida e universal em relação às
práticas e autores que estuda na condição (não problematizada) de
objeto. À diferença da ironia, o humor seria uma arte da imanência.
Não pode ser uma transcendência o elemento que permite estabeler o
critério de separação entre ciência e não-ciência. A posição
privilegiada, distante e de fora,
não encontra lugar em um projeto político baseada no humor.
Novamente o politólogo é convocado como exemplo: “A situação é
a mesma que a do politólogo que sabe que seu problema não teria
nenhum sentido se os gregos não tivessem inventado uma 'arte da
política'. Ele mesmo é produto desta invenção, que ele não pode,
por conseguinte, reduzir a nada. Todavia está livre para pôr em
história esta invenção” (Stengers, 2002, p. 85).
O
princípio de simetria que é mencionado algumas vezes no texto de
Stengers encontra, a partir desta diferenciação, duas
possibilidades de realização. Ou bem é-se irônico e a simetria
realiza-se como redução (ciência é política), ou se elimina a
transcendência, a distância e a lógica identitária através de
uma política imanente do humor, traduzindo a simetria em vetor de
incerteza. Ironia e humor, tal como comparecem no livro de Stengers,
parecem traduzir uma longa querela, que se encontra no cerne da
epistemologia das ciências humanas, consignada, por exemplo, na tese
proposta por Hans Georg Gadamer em seu Verdade e Método.
Ali, Gadamer apresenta uma
dificuldade inerente à escrita da história enquanto prática
hermenêutica. Ou se vive a verdade histórica, coincidindo com sua
feitura no tempo do agora, ou se cria uma distância de modo a
assegurar metodologicamente seu
caráter científico. A leitura de Stengers, bem como daqueles de que
ela é herdeira e que foram convocados no percurso em direção à
viabilidade de uma abordagem não-identitária dos processos de
comunicação, coloca em xeque a própria interpretação como
estratégia privilegiada, política ou epistemologicamente, de lidar
com o mundo.