terça-feira, 27 de setembro de 2011

Sobre a participação no Socine

Semana passada aconteceu na Escola de Comunicação da UFRJ, aqui no Rio, o Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Como estou envolvido com a finalição da minha dissertação não pude estar presente todos os dias, mas tive a sorte de escolher sessões que realmente tinham a ver com minha pesquisa e de ser programado para apresentar o trabalho em um Painel com trabalhos excelentes (Cinema e política) e com a mediação de Ieda Tucherman. As afinidades teóricas entre os trabalhos eram grandes e foram potencializadas pelos comentários da coordenadora da sessão.

Apesar do tempo curto de apresentação (15 min. por conta de duas ausências, originalmente seriam 10), acho que conseguimos comunicar nossas idéias centrais de modo a criar um terreno propício ao debate. A questão debatida no painel que trago neste post é de fundo epistemológico e foi proposta por Tucherman: é preciso pensar em como analisar a imagem sem que a teoria funcione como uma muleta do pensamento. Como partir das imagens e usar a teoria sem subordinar tais imagens? Emblemática da necessidade de pensar esta questão é a quase-total ausência de imagens nas apresentações.

O trabalho que apresentei intitula-se A partilha do indizível ou notas para um elogio da ambivalência e, abaixo segue resumo, bibliografia e vídeos das imagens que analisei.


Procuramos problematizar, a partir das noções de participação e distanciamento, duas produções audiovisuais que abordam o tema da guerra: o documentário Restrepo (2010), de Tim Hetherington e Sebastian Junger e a vídeo-instalação Immersion (2009), de Harun Farocki. Tais noções tornaram-se centrais no escrutínio das relações entre estética e política ao longo do século XX, tendo sido tematizadas por inúmeros autores, dentre os quais nos interessa retomar Paul Ricoeur (1981), em sua revisão da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, e Jacques Rancière, em Le Spectateur Émancipé (2008). Diferentemente do documentário de Hetherington e Junger, que pleiteia a abolição de qualquer distância e reivindica a ida do espectador ao Vale Korengal, Afeganistão, através de suas imagens; a vídeo instalação de Farocki parece inserir o espectador em um lugar ambivalente, a partir do qual a compreensão da relação entre os termos participação e distanciamento segundo uma perspectiva lógica deixa de fazer sentido.
De acordo com os diretores de Restrepo, a intenção do filme foi capturar a experiência do combate, uma vez que, apesar da dimensão política da Guerra do Afeganistão, os soldados dificilmente assumem uma posição neste debate. Baseados neste argumento, Hetherington e Junger concluem que devemos entender a experiência desses soldados independentemente de nossas opiniões políticas que, segundo eles, são um meio de evitar a realidade. Tal argumento, entretanto, apresenta um problema fundamental: se, por um lado, a imersão no Vale Korengal insere-se na contramão da mediação da guerra através de imagens informáticas que apresentam os campos de batalha traduzidos em um conjunto asséptico de informações, como Georges Didi-Huberman (2009) criticou a respeito da cobertura midiática da Guerra do Golfo, as imagens de Hetherington e Junger se adequam perfeitamente à retórica do real sem mediação - um real anterior e ontologicamente superior a toda e qualquer crença.
A vídeo-instalação de Harun Farocki não apresenta o campo de batalha do mesmo modo que Restrepo. Immersion apresenta um workshop com psicoterapeutas militares e civis em uma base do exército americano. Farocki registra o tratamento, através de terapêuticas de revivência que utilizam tecnologias de realidade virtual, dos soldados que retornaram da Guerra do Iraque sofrendo de PTSD. Tal terapêutica permite ao soldado-paciente, usando um headset, dirigir um tanque ou andar pela cidade onde o evento traumático se deu. Nas primeiras sessões, o terapeuta reduz a intensidade da experiência original e conforme o soldado vai se habituando e ficando mais confortável na revivência, novos elementos são introduzidos na simulação. Vemos, em uma das telas de Immersion, soldados usando headset e narrando, com maior ou menor hesitação, a experiência que adquiriu autonomia sob a forma do trauma; na outra tela, vemos o ambiente simulado do game terapêutico, em sincronia com os movimentos que os soldados realizam na tela adjacente. Desse modo, temos acesso aos soldados em terceira pessoa, mas nosso ponto de vista simultaneamente coincide com o deles e vemos as imagens do evento traumático simuladas no video game terapêutico.
A potência de Immersion parece residir justamente na brecha aberta por (entre) essas duas telas. Pois se podemos acessar o soldado enquanto “outro” que narra suas dores e mobilizar alguma empatia nesta distância, o trauma revivido em primeira pessoa através das gastas imagens dos jogos eletrônicos de guerra, dificilmente mobilizam em nós novos pensamentos, ações e olhares. É a dissimetria entre a banalidade de tais imagens e a dor que elas provocam no soldado durante a terapia que nos permite intuir o trauma. E talvez a intuição possua um caráter similar à curiosidade e à atenção, afetos que Jacques Rancière (2008) sagazmente apontou como alternativas ao desgastado afeto da indignação pública.


Bibliografia

BENJAMIN, Walter. A modernidade. Ed. e trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
DIDI-HUBERMAN, G. “How to Open Your Eyes”. In: EHMANN, A.; ESHUN, K. (eds). Harun Farocki: Against What? Against Whom? London: Koenig Books and Raven Row, 2009. p. 38-50
EHMANN, A.; ESHUN, K. (eds). Harun Farocki: Against What? Against Whom? London: Koenig Books and Raven Row, 2009.
GADAMER, H.-G. Truth and Method. 2nd Edition. London: Sheed & Ward, 1989.
RANCIÈRE, J. La partage du sensible: esthétique et politique. Paris: La Fabrique Éditions, 2000.
__________. Le Spectateur Émancipé. Paris: La Fabrique Éditions, 2008.
RICOEUR, P. Hermeneutics and the Human Sciences: Essays on language, action and interpretation. Edited by John B. Thompson. Cambridge, Paris: Cambridge University Press, Editions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1981.
YOUNG, A. The Harmony of Illusions: Inventing Post-Traumatic Stress Disorder.Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1995.

 





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